Tolkien, o “racismo” e o risco do anacronismo

Tolkien o senhor dos aneis

Nos últimos anos, J. R. R. Tolkien — o criador da Terra-média — voltou a ocupar o centro das discussões culturais, mas não por motivos estritamente literários. Em meio a debates cada vez mais acalorados sobre representatividade e reinterpretação de clássicos, o autor de O Senhor dos Anéis passou a ser acusado de racismo e de promover uma visão etnocêntrica e eurocêntrica do mundo.

As redes sociais e parte da crítica pós-colonial o colocaram, às vezes, lado a lado com apologistas do imperialismo britânico. A lógica parece simples: se as forças do “bem” em Arda são em sua maioria brancas e nórdicas, e as do “mal” aparecem com tonalidades escuras ou “orientais”, então Tolkien teria projetado um mapa moral baseado na cor da pele.

Mas as coisas raramente são simples quando se trata de literatura — e ainda menos quando falamos de Tolkien.

O perigo das leituras fora do tempo

Ler Tolkien sem levar em conta o contexto histórico é como tentar traduzir Beowulf com Google Tradutor: perde-se o idioma, o ritmo e o sentido.

O professor de Oxford era um filólogo — alguém obcecado por palavras antigas e mitologias perdidas. O que ele queria não era fazer um panfleto racial, mas “criar uma mitologia para a Inglaterra”, como ele mesmo escreveu a C. S. Lewis em 1931.

Quando descreve povos, línguas e culturas diferentes, Tolkien não está montando um mapa político do mundo moderno. Ele está inventando uma cosmogonia, um mito das origens. Sua linguagem de “raças” (Elfos, Homens, Anões, Orcs) é herança direta do vocabulário literário medieval — onde “raça” significa “linhagem”, “povo” ou “espécie”, não cor da pele ou hierarquia biológica.

O problema surge quando aplicamos retroativamente o nosso vocabulário do século XXI — “branquitude”, “colonialidade”, “racialização” — a um autor que escrevia antes desses conceitos ganharem o sentido político que hoje têm. É o que os historiadores chamam de anacronismo crítico.

As cartas e a consciência moral de Tolkien

Tolkien viveu duas guerras mundiais e viu de perto o horror do racismo institucional. Em 1938, um editor alemão pediu que ele comprovasse sua “arianidade” para publicar O Hobbit na Alemanha nazista. A resposta foi uma ironia cortante:

“Lamento não ter ancestrais judeus, pois seria uma honra.”

Não é a fala de um supremacista.

Mais tarde, já professor em Oxford, Tolkien declarou publicamente: “Tenho o ódio ao apartheid nos ossos.” E em várias cartas a seu filho Christopher, combatente na Segunda Guerra, ele condena “a perversa doutrina de sangue puro” de Hitler.

Essas evidências biográficas não “absolvem” o autor de possíveis vieses — nenhum escritor está imune ao espírito do seu tempo —, mas desmontam a narrativa de que Tolkien teria sido conscientemente racista como alguns grupos insistem em o taxar.

As “raças” da Terra-média e o mito da pureza

O mundo de Tolkien não é binário. Os Elfos, seres belíssimos e sábios, também são orgulhosos e corruptíveis. Os Homens do Oeste, herdeiros de Númenor, carregam a arrogância que os levou à ruína. E até entre os Orcs — símbolos do ódio e da degradação — há traços de consciência e sofrimento.

A própria lógica moral da Terra-média vai na direção oposta ao racismo: nela, a nobreza está nos atos, não no sangue. É um Hobbit, um ser rural, de pés peludos e sem linhagem, quem carrega o destino do mundo.

Em um tempo em que a fantasia ainda se inspirava em aristocracias e heróis “de raça pura”, Tolkien subverteu essa tradição ao fazer do pequeno e do imperfeito o centro da redenção, mesmo com seus elfos angelicais e herdeiros de reis presentes na obra.

Ler Tolkien por um viés étnico? Então também devemos ler seu lado antimodernista e anti-industrial

Há quem queira ler Tolkien exclusivamente por um viés étnico — enxergando nele uma alegoria da branquitude europeia, uma defesa da “pureza” ocidental.

Mas se esse recorte for levado a sério, então também é preciso reconhecer os outros veios filosóficos da sua obra: o antimodernismo, o anticapitalismo pastoral e a crítica feroz à industrialização.

Tolkien desprezava o mundo moderno tanto quanto desprezava as ideologias totalitárias. Em cartas e ensaios, ele descreve as chaminés, os tanques e as cidades cinzentas da Inglaterra como símbolos da decadência espiritual de um século que trocou o sagrado pelo maquinário.

O Senhor dos Anéis é, antes de tudo, uma elegia à terra viva, à memória, à comunhão entre os povos e à simplicidade dos Hobbits — contra a lógica do progresso a qualquer custo.

Se quisermos ler Tolkien politicamente, devemos fazê-lo por inteiro: junto ao medievalismo linguístico, está o repúdio à cultura de consumo e à destruição ambiental.

É paradoxal — e até irônico — que grupos de extrema-direita tentem se apropriar de um autor que, no fundo, via o industrialismo moderno (de esquerda ou de direita) como o verdadeiro “Mordor”.

A crítica contemporânea e o legado em disputa

Pesquisadores como Dimitra Fimi e Tom Shippey vêm mostrando há décadas que Tolkien deve ser lido com as ferramentas da filologia e da história das ideias, não apenas da teoria crítica moderna. Já estudos mais recentes — como o de Robert Stuart ( Tolkien, Race and Racism in Middle-earth , 2022) — reconhecem imagens racializadas em certos trechos, mas afirmam que não há evidência de intenção ideológica racista.

O que há, na verdade, é um campo de debate vivo: entre a leitura ética do presente e a interpretação histórica do passado.

No meio desse ruído, Tolkien tornou-se vítima de dois extremos: de um lado, fãs que o blindam de qualquer crítica; de outro, leitores que o reduzem a um símbolo de supremacia branca. Ambos os lados empobrecem o diálogo literário.

Por que ainda vale a pena ler Tolkien

Discutir racismo em Tolkien não é censura — é parte da evolução crítica. Mas essa discussão precisa de mais contexto, não de slogans.

A Terra-média é mais do que um reflexo do século XX europeu; é uma parábola sobre a corrupção do poder, o perigo da dominação e a esperança que nasce no improvável.

No fim, talvez o ponto mais antirracista de Tolkien seja este: o mal não está em uma cor, um povo ou uma cultura — está na escolha moral de cada um.

E se quisermos encontrar “mensagens políticas” em Tolkien, que encontremos também a crítica à arrogância humana, à mecanização do mundo e à perda da imaginação — males que ainda hoje nos assombram, de Mordor a instituições políticas.

Ler Tolkien com olhos atentos e mente aberta é, ainda hoje, um ato de resistência contra qualquer grupo que quer cooptar uma das obras mais importantes da fantasia para uso estritamente político.

Fontes:

The Letters of J. R. R. Tolkien (ed. Humphrey Carpenter, 1981)

Fimi, Dimitra. Tolkien, Race and Cultural History (Palgrave Macmillan, 2008)

Shippey, Tom. J. R. R. Tolkien: Author of the Century (HarperCollins, 2000)

Stuart, Robert. Tolkien, Race and Racism in Middle-earth (Palgrave Macmillan, 2022)

Maldonado, Rios Thompson. “Caucasoid, the Mongoloid and the Negroid”: Race in Tolkien’s Legendarium (University of Glasgow, 2023)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *